Banda de Pífanos Ferreira, cujo líder, fundador, mestre do grupo - pois fabrica as gaitas e repassa ensinamentos, desde a confecção, como já disse, ou em madeira, torneadas, com afinação com cera de abelha na sua embocadura - até como tocá-las, e, óbvio, o seu Maestro. Essa pessoa é José Ferreira, conhecido como Zé de Bilia, porque é filho do finado Bilia (em Serrinha, as pessoas são conhecidas e apelidadas, seja pela filiação, seja pela profissão).
A Banda fora convidada de honra para abrir o Festival de Arte Bahia / Festival Nacional de Dança Contemporânea que se realizou no pomposo Teatro Castro Alves, em Salvador, em 1979.
Assim, saímos de Serrinha para a capital, ainda pela manhã num ônibus oferecido pela Universidade Federal da Bahia, uma das promotoras do evento. No caminho, surgiram pedidos dos tocadores, para que levássemos o grupo para próximo do mar, pois a maioria, nunca tivera a alegria de conhecê-lo. Eu fazia parte da comitiva como produtor.
Haja vista o horário, nós fomos direto para uma famosa churrascaria chamada Minuano, no bairro da Pituba e satisfazendo os tais desejos, após o rega-bofe à base do melhor churrasco, atravessamos a pé as duas pistas da Avenida Manoel Dias da Silva em direção ao mar, ao lado do Clube Português.
Logo na chegada, ouvimos um brado de espanto: “eita, peste, que açudão!” Um vexame, quase uma tragédia: alguns, que nunca tinham visto o mar, se atiravam e bebiam sua água provando o seu sabor e gritavam muito admirados: tem sal! Houve possibilidades de afogamentos.
Todo esse momento cheio de muita graça e de empolgação aumentou ainda mais à noite, quando adentraram pela porta da frente do TCA, passando pela platéia lotada com cerca de 1.500 pessoas, a aplaudirem a bandinha que tocava lindo, suavemente, aquele repertório divino que nos leva às origens interioranas, sertanejas, rurais. Desceram da platéia até subirem o palco, tocando e dançando aquele jeito tão gostoso que todo brasileiro tem no pé, na pele, no rosto, no corpo e na alma, cheios de trejeitos e salamaleques. E tome-lhe samba duro, samba-de-roda, e mais cantorias, tudo ao som das gaitinhas de pífanos, das caixas e pratos, para o deleite e a ovação de um público feito de pessoas afeitas a todos os gêneros, formação e bom gosto, mas acima de tudo, de artistas do teatro e da dança, vindos dos mais diversos rincões do Brasil.
Uma festa festejando outra festa, que era a junção dos dois festivais, um nacional e outro estadual.
Finda a apresentação, outras atrações deram prosseguimento ao evento, enquanto os nossos conterrâneos saiam de cena indo até os camarins.
Última etapa da viagem, antes do retorno à cidade de origem: a universidade oferecia uma merenda numa lanchonete em pleno Campo Grande defronte ao teatro e à heróica cabocla. Receberam os tíquetes de alimentação. Só que os nossos heróis, na sua maioria, da roça, não conheciam uma “hamburgueria”. Chegaram e não entendiam de saída com era que aquilo funcionava. Passou uma primeira meia hora e eles esperando que alguém lhes servisse. Como isso não acontecia, fui procurado pelo “band-leader”, Sr. Zé, que me pedindo socorro, reclamava:
- Sr. Macaúbas, o negócio lá “tá” feio: tem mais de 30 minuto, que nós “óia” pra cara um do “ôto” e pra cara dos “ôme” da “tar” “lainchonete” e nada de servir a “gororoba”.
Aí, eu fui ver o que estava acontecendo e lá chegando procurei um dos garçons perguntando-lhe o que era que servia e ele então discorreu pra mim e pra seu Zé, de cor e salteado, como quem reza uma ladainha:
- Hambúrguer, X-búrguer, X-eggbúrguer, X-saladabúrguer, chiken-X-búrguer...
Ali, pareceu que acabara de fundir a cuca do maestro, que se reuniu com seus companheiros a confabularem gesticulando muito. E, solução nenhuma. Àquela altura fui embora, confiando na escolha de cada um do grupo. Passaram à segunda meia hora e novamente, seu Zé foi me procurar com a mesma lengalenga anterior e eu então lhe perguntei:
- Mas o garçom não lhe disse o que tinha pra comer?
- Dizer, ele disse, mas “nóis” “num” entende o palavreado dele.
Novamente me dispus a tentar resolver a questão e mais outra vez, pedi que nos dissesse qual era o “menu” da casa.
Novamente, com muita disposição e segurança, a mesma ladainha:
- Hambúrguer, X-búrguer, X-eggbúrguer, X-saladabúrguer, chiken-X-búrguer...
E eu disse a seu Zé:
- Pronto, seu Zé, veja com o grupo, o que se deseja comer.
Nova e demorada reunião e enfim uma decisão consensual do mestre Bilia para o maître do restaurante:
- “Véio”, “c´uá” fome “qui nóis tá´qui”... o burro “qui vinhé, morre!
Relato enfim essa história
singela, o quão verdadeira,
jamais pra depreciar ou por inglória
a fazer dos personagens, quaisquer bobeira,
mas, enaltecendo o jeito simples, sutil
e inocente, porém sábio, digno, decente
do povo mais belo e mais quente
do nosso gigante Brasil:
o povo sertanejo do semi-árido
do Território do Sisal,
alegre, artista, contente, sem igual.
Ind´outro dia, fiquei muito triste e abalado, ao saber por uma neta de Zé de Bilia, que ele não mais entre nós conviveria, que ele fora convidado pelo Pai, a ir tocar sua gaitinha de pífano e ensinar essa magia, lá no céu, quiçá pra levar toda sua alegria.
À essa família Ferreira, minhas, enquanto nossas territoriais condolências.
A D. Maria, calejada de sofrimentos, mulher acostumada a dialogar e confessar suas agruras com as rosas do seu jardim e dizem, por aí e eu tiro a Cartola, “Que As Rosas Não Falam!”, todo o meu sentir em memória desse homem, um dos maiores, que conheci e convivi estrepolia & estrepolia, extrapolando musicalidade, o bom caráter e a honradez, de coração e de alma! Ele era um dos que sempre me chamaram de Macaúbas.
“Requiescat in pace, Bilia!”
Fernando Peltier (Artes Cênicas) – Bacharel em Direção Teatral / UFBA. Poeta, Dramaturgo e Professor de Artes Cênicas;